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domingo, setembro 30, 2007

Dias úteis


O sr. Viegas é o gentil personagem que me vende o jornal todos os dias. Todos os dias não será, porque a sua gentileza faz com que ao aproximar-me do seu quiosque - e enquanto ele mata o tempo a deambular pelos canteiros aí existentes - tenha a amabilidade de me avisar mal me aproximo: “Já não tenho o Público.”
Eu agradeço a amabilidade para evitar que ande 10 metros desnecessários e volto para trás. Quando quer conversa, nada me diz. Atrai-me para a sua armadilha – o interior do quiosque, claro – e só então me informa que o jornal já esgotou. E é nessa altura que ataca com uma qualquer banalidade:
- Isto realmente! Já viu quanto ganha o gajo das finanças? Não há-de o país estar mal. Geralmente dou dois dedos de conversa para me mostrar educado. Gentil como é, o Sr. Viegas não insiste. Percebe que não tenho tempo e que a conversa também não tem muito assunto e fica-se por aí. Por vezes, quando lhe sinto a solidão por detrás dos seus jornais e revistas, finjo ler os títulos das revistas de impressa cor-de-rosa enquanto espero pelo troco, o que permite trocar umas banalidades e que só serve para prolongar o breve momento de companhia. Talvez ainda nesse sentido, todos os dias, quando entrego um euro para pagar 90 cêntimos, pergunta-me pondo a sua cara de velhote distraído: ”ora, quanto é o jornal? Quanto é que tenho que lhe dar…”. Eu, não querendo ofender o meu fornecedor de informação diária, finjo procurar nervosamente pelo preço do jornal e afavelmente digo-lhe sempre “ ora…isto é... 90 cêntimos…está aqui, olhe. Pois então só me deve 10 cêntimos”. Nessa altura, a moeda já se estende na mão vivida do Sr. Viegas para calmamente me dar o troco. Tanto eu como ele sabemos o preço do jornal, mas já faz parte do ritual a incógnita do preço, o troco, o boa tarde, o até amanhã.
É um personagem no mais bonito sentido da palavra, claro. O bigode que contorna o lábio superior, finamente desenhado e, presumo eu, diariamente aparado, lembra-nos aqueles senhores educados de outros tempos, aqueles seres que perguntam “a menina dança?”. Mantém o seu cabelo cuidadosamente penteado para trás, como manda a moda de há muitos anos, contudo um pouco comprido demais de acordo com os ditames da época que eu lhe atribuo. Aí, o gentleman do bairro dá um ar mais rebelde, menos certinho, que só faz com que apreciemos mais a figura. Para isso contribui também o seu colete com muitos bolsos, cheios de coisas que todos os dias deve vestir como que o seu uniforme de trabalho. Farense como é, possui aquele sotaque que só quem conhece pode compreender. O sotaque farense (e também dos arredores, Olhão, Quarteira, etc..) é pródigo em brutalidade. As frases são arrematadas com violência e exaltação, as perguntas parecem exclamações e as exclamações parecem perguntas retóricas. Quem por aqui passar desprevenido, pensará que são todos arrogantes, brutos, como que filhos únicos mimados para quem o mundo existe só para eles. Nada disso. É só forma, o conteúdo é igual ao de qualquer outro lusitano.
O bairro conhece-o, eu conheço-o, e no fundo nada sei sobre ele, sobre o que pensa, sobre quem é. Hoje decidi ficar e explorar. Confesso que os meus afazeres deram-me pouca vontade de sair dali e portanto segui o ritual como manda o protocolo, e quando veio a pergunta da actualidade, respondi, e fiquei. O próprio Sr. Viegas por dois ou três segundos deixou de olhar para a sua banca, olhou para mim, eu senti que ele não estava à espera do meu troco. Ele percebeu que eu ia ficar, respondeu, eu retorqui, ele esgrimiu uns argumentos, eu concordei em parte, ele não concordou com essa parte, veio um dos seu outros clientes diários – à procura do novo vinho tinto da revista de vinhos – ficou, conversámos, fomos ver que vinho era.
- Estremadura? Hum…Eu gosto mais dos alentejanos - disse já um outro comparsa que entretanto tinha se tinha juntado à conversa.
- Olhe que isto é bom! Acha que eles iam vender vinhos maus? - defendeu-se o Sr. Viegas um bocadinho ofendido com a afirmação feita num sotaque farense perfeito.
A conversa ainda foi para o grau, a casta, a quinta , o preço, a embalagem, o tempo.
Foi aí que tive um dos mais bonitos e prazenteiros momentos dos últimos tempos da minha vida. Dei por mim dentro de um desarrumado quiosque, com três reformados, a falar de política e vinhos. Os ponteiros do relógio nunca param e eu tinha que ir.
- Boa tarde, até amanhã. - disse eu escapulindo-me pelo meio das cascatas de jornais penduradas no alpendre.
- Até amanhã! - Exclamaram os meus novos amigos.
Ainda mantenho o sorriso de prazer com que de lá saí.

quarta-feira, abril 25, 2007

Terra da fraternidade

Há sempre um sítio onde nos sentimos bem. Seja o nosso lar; aquele sítio especial onde namorámos; onde tivemos as férias inesquecíveis; aquele sítio mágico que pensamos ser os únicos a conhecer e onde o mundo pára um bocadinho só para nós; aquele sítio das brincadeiras de infância; há sempre um sítio que nos aconchega o espírito.
Eu tenho alguns, um de cada dos que exemplifiquei e mais um especial: O bar Chessenta, em Faro.
Primeiro uma curta declaração de (des)interesses: Não sou comunista; gosto muito pouco do PCP, em termos partidários; e não tenho nenhuma admiração pela figura do Che Guevara.
Quanto ao bar, não é tanto o sítio, no sentido de espaço físico, pois esse mudou, é o ambiente que lá se vive. O bar Chessenta - para os amigos simplesmente Che - é comunista, a decoração é comunista, os frequentadores habituais são, na sua maioria comunistas, a música ao vivo é de intervenção e o ambiente, esse, é de harmonia.
Conheci o Che há quase 9 anos. Entrei lá pela primeira vez quando estava a ser praxado no meu primeiro ano de faculdade. As vítimas eram “os 3 das Caldas” (conhecidos na blogosfera por queirosene, Xico e Mr.T) que, arrastados pelos abusadores, foram parar a uma tasca vazia, de aspecto rude e que transpirava comunismo pelas paredes. Alguém nos mandou ajoelhar e cantar uma música qualquer. Aparece então um senhor magríssimo, de barba, com a voz embagaçada que nos disse a frase mais sentida que ouvi em toda a minha vida: “Levantem-se já! Mais vale morrer de pé do que viver de joelhos! De joelhos neste bar, NUNCA !”.
O embaraço foi geral, o silêncio constrangedor e a lição para a vida. A memória tem 10 anos, a emoção desta descrição poderá turvar os factos, mas a frase, essa, jamais esquecerei.
O tal senhor, era o Sr. Mário, dono do estabelecimento na altura. E como todos os personagens têm um compincha, a dupla ficava completa com o Sr. Zé. Portuense, de bigode, frases imperceptíveis, cabia-lhe a ingrata tarefa de servir às mesas. O bar é uma espécie de duplex, com umas escadas íngremes que nos levam ao primeiro andar onde estão as mesas e o “palco”. Inevitavelmente alguém caía nas escadas molhadas por cerveja, ou outro líquido e invariavelmente era o Sr. Zé a vítima das circunstâncias. Não fora, na maior parte das vezes, ele estar altamente embriagado e a transportar copos, e a gargalhada geral mesclada com a música ambiente, teria muito mais piada.
O Mário e o Zé há muito que deixaram o bar. A tasca que conheci há muitos anos, a tasca onde se escrevia nas paredes o que nos ia na alma, a tasca cheia de gente a cantar as músicas do Zeca e com imperial ao preço da chuva, mudou. Transformou-se num bar limpo, bem arranjado, com um pequeno plasma capitalista que destoa do resto e com paredes nuas de criatividade pessoal - felizmente, os quadros, fotografias e poemas que decoram o ambiente, mantêm-se.
O que este bar tem de especial, para mim, não é a decoração, nem a música, nem o preço (esse não é de certeza). O que de bom tem o Chessenta, é o que de bom tem, por exemplo, a festa do Avante. O espírito de festa, de comunhão, de liberdade, de igualdade, de fraternidade, o espírito de camaradagem, que nos contagia e alegra. É impossível não gostar. Ódio é uma palavra que nunca deve lá ter entrado. Para isto muito ajudam os seus clientes habituais. Os mais jovens, na sua maioria da JCP, demasiado eufóricos por jogarem, que é como quem diz cantarem, em casa; e os mais velhos: retornados, socialistas, comunistas, bloquistas, “Abril-istas” e resistentes do antigo e do actual regime - pelo menos é assim que os vejo.
Há algum tempo que não ia lá. Ir ao Che, não é só ir beber um copo e pôr a conversa em dia com os amigos. Ir ao Che implica ouvir música ao vivo, cantar e falar com os vizinhos da mesa ao lado, de preferência nas noites de lotação esgotada. Desta forma, já não ia lá a alguns meses.
E claro, ontem, dia 24, só havia um sítio onde ir. O ritual cumpriu-se e lá estive eu. Acompanhado de novos e velhos amigos, rodeado de novos e velhos desconhecidos, com os cheiro dos cravos no ar, de braço dado com os e as camaradas do momento, a cantar a única música que me causa arrepios e humedece os olhos: “Grândola Vila Morena”.
Chessenta, terra da fraternidade…