domingo, julho 06, 2008

Conto

E finou-se. Morreu logo a seguir a beber o último sorvo de cerveja daquela noite. Nunca a palavra “último” foi tão bem aplicada. Não o "último" como aquele cigarro que milhentas vezes dizemos ser o último. Falo literalmente do “último”. Doravante nunca mais ele iria beber uma cerveja. A partir desse momento deixou de estar vivo. Enganei-vos quando disse que morreu. De facto, não sei. Deixamo-lo de ver vivo, só isso. Não sei se morreu. A garrafa da cerveja estava agora deitada no chão, a regurgitar o que restava no seu interior. O cheiro da cerveja entornada no chão, chegava agora a todos os que ainda estavam boquiabertos com a morte. A morte, no fundo, não incomodou a ninguém. O que incomodou mesmo foram as suas últimas palavras. Ninguém estaria à espera de ouvir aquilo. Ainda hoje não sei se ele estaria à espera de dizer aquilo. Terá sido um devaneio do momento? Terá pensado durante semanas e planeado o momento certo para o dizer? Terá visto ou ouvido qualquer coisa que o fez, simplesmente, ter vontade naquele preciso instante de dizer aquilo? Seja como for, disse-o. E para os que ainda o insultaram, aquando da primeira vez, por ter ousado dizer aquilo, ele repetiu. Disse 2 vezes. A segunda mais irritada do que a primeira. Irritada porque parecia que ninguém o tinha levado a sério. Como é possível que ninguém leve a sério uma frase que comece com as palavras “tenho uma coisa a anunciar-vos”? Não devemos nós, espectadores, apurar o ouvido para ouvir com atenção qualquer frase que assim comece? E se for para anunciar um casamento, um filho, uma terrível doença ou outra coisa qualquer? Qualquer coisa que se inicie com um anúncio, com um pedido de atenção, deverá ser levada a sério. E não ter sido, o anúncio, recebido com honras de ouvidos e olhos atentos, irritou-o. Esperava que o ouvissem com o coração. No fundo, esperava que o ouvissem de qualquer maneira. Mas ninguém ligou à primeira. Acharam que o anúncio seria algo mundanamente vago e que por entre as habituais conversas ocas de conteúdo e as coscuvilhices diárias que provocam a êxtase destas mentes simples, seria só mais um tal de “anúncio”. Enganaram-se. Ninguém ali poderia imaginar que ele diria, e de seguida o faria. Alguém, mente inocente e pouco dada às seriedades da vida, ainda perguntou se ele estaria a brincar. Mas era a sério. Ninguém diz aquilo a brincar. Ele disse-o enquanto olhava uma única flor num imenso jacarandá que cobria a esplanada. Uma única flor que sobreviveu até esta época do ano. E ele, com o olhar leviano fixo na flor disse: Tenho uma coisa a anunciar-vos. Vou morrer, estou farto disto. Adeus.
Só mais se ouviu o som da garrafa a cair no chão.


Miguel Guerra in Pequenos Contos de Miguel Guerra

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